quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Mudanças

Moro na mesma casa há trinta anos. De tempos em tempos, quando chego da rua, sinto um desconforto enorme e a sensação de que tudo está fora do lugar. Ou sujo...
Há uns anos, por exemplo, cheguei em casa e me deparei com a completa ausência de paredes e divisórias. A cozinha, a sala, o quarto, tudo ocupava um único e grande cômodo. A exceção: o banheiro, um cubículo no quintal. Longe de tudo. Cansado daquele lamentável estado de coisas misturadas, decidi, neste dia, começar uma grande reforma.
Separei os cômodos, criei quartos e divisórias, impus limites e barreiras aos que vem de fora, embora sempre tenha deixado a porta da rua aberta, aos mais diletos e perigosos amigos. Quiçá um erro.
Esta reforma acabou há alguns anos, em meio a uma brutal crise. Não tinha capital e nem espaço para colocar alguns móveis. A reforma emperrou-se.
A angústia ficou, cresceu.
Desde então, muitas das vezes em que chegava em casa e me deparava com a casa inacabada, estavelmente inacabada, decidia pintar uma parede, jogar fora um móvel, pregar um quadro, uma fotografia e ir tocando a marcha da vida em frente, mais ou menos calmo, menos ou mais angustiado.
Feitas as ressalvas e considerações iniciais, para que você leitor, possa entender a secura das metáforas, posso transitar agora para o grande evento destes tempos recentes e para a grande descoberta.
Numa sexta-feira qualquer destes últimos meses, entrei em casa e me veio uma sensação de sangue fugindo da barriga. Era o monstro que habita a casa desenhando-se em forma de incômodo.
Olhei-o nos olhos e pensei espantá-lo limpando sua sujeira. Enquanto varria um dos muitos cantos da sala, o sangue me pulou aos olhos e me deu uma vontade de atirar tudo pela janela. Queria outra casa, outros móveis, alguém pra limpar aquela sujeira, que nem mais sabia se existia ou não.
Um pouco atordoado, com tudo inacabado, sentei-me na frente do sofá e olhei para um grande espelho em minha frente. Pude notar que minhas rugas eram maiores que há dez anos. E acompanhavam as rachaduras, ainda minúsculas nas paredes. Pensei que porra. Nunca havia prestado atenção, mas notei que meu incômodo tinha uma direção, tinha um sentido. Podia conectar aquele nó interno a um objeto, sempre via, mas é como se o esquecesse, porque habituado tanto a ele. Este objeto era o tapete, o tapete da minha vida. O grande incômodo nesta casa é o tapete.!
A história breve deste tapete poderia ser mais ou menos interessante. Recebi-o de meus pais ainda muito pequeno. Na época, ele não tinha mais que dez ou quinze centímetros. Mas cada ano ele crescia para os lados e em espessura. Cada vez maior e espesso, ao ponto de ter que cortar suas abas, ora ou outra encostadas nas paredes.
Decidi enrolá-lo e levar pra fora. Mas o peso dele era imenso. Percebi que demoraria algumas semanas. Então, comecei lentamente um processo de limpeza, enquanto refletiria sobre o que fazer.
Ao levantar um de seus lados, subiu tapete e poeira. Ainda não tinha tirado os móveis que o apoiavam, mas percebi que por baixo haveria muito mais poeira. Limpei brevemente uma parte do solo abaixo do tapete e descobri uma coisa incrível. Por baixo daquele tapete havia um chão, este chão dava acesso a uma outra casa igual a minha, mas invertida e escondida por baixo de tanta poeira. Percebi que o trabalho seria longo. Mas resolvi o problema.
O problema, o problema era o tapete.
E a poeira, claro...  

4 comentários:

  1. Sensacional !!! um texto difícil... rsrsrs pra mim... tive que ler e reler .... mas quando conseguimos perceber a nossa própria vida no tapete... é muito bom !!!!
    Me lembrei da história de Alice no País das Maravilhas... quando ela atravessa o espelho e pode ver uma outra realidade... e quando nos damos conta de LEVANTAR o tapete e ver o que incomoda...
    AMEI !!!!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Muitoo bom! Fantástico! Um possível conflito edipiano como primeiro conflito entre o id e o ego esse com uma tentativa de esconder, reprimir o primeiro. Simbolizado pelo recebimento do tapete pelos pais. Um crescimento do tapete como se o ego se desenvolve-se, ficasse maior que o próprio ser, escondendo a poeira da alma e mesmo assim passasse desapercebido! As neuroses que surgem no personagem como um mecanismo de deslocamento, fuga dos verdadeiros conflitos que acabam por levar a eles como nos sonhos de Cassandra, em que a tentativa de evitar seja o caminho que o guia ao temido! Esse looping eterno é quebrado em um fim ótimo com a descoberta do tapete, com a suavização desse tapete e o contato com os verdadeiros conflitos! mas também questiona essa resolução simples do problema, mostrando o personagem negociando consigo mesmo e assumindo um problema secundário como o principal. regride ao looping eterno! triste Professor, mas c'est la vie! fantastico

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  4. Muitoo bom! Fantástico! Um possível conflito edipiano como primeiro conflito entre o id e o ego esse com uma tentativa de esconder, reprimir o primeiro. Simbolizado pelo recebimento do tapete pelos pais. Um crescimento do tapete como se o ego se desenvolve-se, ficasse maior que o próprio ser, escondendo a poeira da alma e mesmo assim passasse desapercebido! As neuroses que surgem no personagem como um mecanismo de deslocamento, fuga dos verdadeiros conflitos que acabam por levar a eles como nos sonhos de Cassandra, em que a tentativa de evitar seja o caminho que o guia ao temido! Esse looping eterno é quebrado em um fim ótimo com a descoberta do tapete, com a suavização desse tapete e o contato com os verdadeiros conflitos! mas também questiona essa resolução simples do problema, mostrando o personagem negociando consigo mesmo e assumindo um problema secundário como o principal. regride ao looping eterno! triste Professor, mas c'est la vie! fantastico

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