quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A história do menino afogado

À margem da imensidão azul, foi encontrado de espadas para cima. Sem dúvida, estava em seu lugar, finalmente um marginal.  Em vida, havia sido bem menos que isso.
Naquela manhã, um soldado percebera uma deformação que interrompia o bater de ondas. Estarrecido, carregou o corpo nos braços.
Na semana anterior, aquele corpo era um menino. Juntamente de seus pais e avós, havia perambulado léguas no longo areal a caminho do litoral, fugindo da violência e da opressão de sua terra.
Um longo deserto, outrora habitado por guerreiros de uma tribo, hoje dispersa ou submetida a todos e a si mesma. Durante séculos, a região que habitava fora invadida por homens cobiçosos, sedentos de luxo, luxuria e transformando tudo em lixo. Estes homens, maus para uns, libertadores para outros, apropriaram-se de suas terras, suas vidas, seus sonhos. 
Vira e mexe, estes dominadores eram expulsos ou abandonavam aquele lugar de semi-existência, sempre árido. Iam-se em busca da vida do litoral, de outras riquezas, de outras paragens.
Deixavam-nos, todos, abandonados a própria sorte, dominados agora por ditadores.
Esta história se repetiu na vida de seu avô, de seu pai, repetia-se em sua breve existência. Guerra, seca, dominação, abandono, ditadores interessados em terra e sangue.
Em meio a mais uma longa disputa por terras entre homens que os opunham uns aos outros, seu pai tomou a decisão. Viajariam até o litoral, subiriam em uma embarcação e seriam felizes, longe da seca, das dores, da fome, da guerra e do sangue. Iriam para um lugar melhor, trabalhariam, fariam a vida.
Juntaram o pouco que tinham. Os avôs, uma avó, pai, mãe e dois irmãos. Entraram numa embarcação. A viagem demoraria três dias. O mar era calmo e o tempo era bom. O barco, nem tanto.
O resto é aquilo que todos sabem. Engolidos pela imensidão do mar, nem imaginaram se encontrar em outro mundo. 
O garoto foi cuspido de volta e amanhecia naquela posição, naquelas margens imensas.
No dia seguinte ao acontecido, todos comentavam, naquela cidade, a história do menino nordestino encontrado nas areias de Santos.
Sem foto, sem alarde, sem memória.
São Paulo, Brasil, 1965.

5 comentários:

  1. Putz, como você escreve bem! Que bom que você tem um blog!
    Saudades,
    um beijo,
    Ana.

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  2. ah, que bom poder ler seus textos de novo. Fico muito feliz que tenha se sentido 'convidado' a voltar aos textos.
    Parabéns pela crônica. Você sabe que eu gosto do gênero, né? Achei a escolha do assunto muito adequada e o final bem bonito.

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  3. Eu me senti em uma espiral - e engolida pelo final. Foi um soco no estômago. Essa dor é necessária e o texto está ótimo!

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  4. Obrigado pela leitura, ela é muito valiosa. A pretensão é não ter pretensão... Ir escrevendo e descarregando o mar de coisas dentro de mim... Obrigado pelas palavras.

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