quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Historietas de Amor 3 - Primeiro Amor

Todos os dias, em suas férias, Zé Roberto despertava nas primeiras horas. Tomava o leite e pedia benção a avó, vestia sua camiseta listrada do Corinthians e descia um dos lados daquela ladeira. Com uma bola de capotão embaixo do braço, acordava cada um dos vizinhos.
Se reuniam antes do sol queimar a pele, afinal era Verão naquele bairro, de uma média cidade da região metropolitana de São Paulo. Aos poucos, o sol começaria a queimar as peles deles, mas não sentiriam.
Suas chuteiras eram os pés descalços, gastos nas pontas dos dedos, com solas grossas. Antes da partida, caçavam tijolos de barro, riscavam a grande área e o círculo central. As linhas traçadas dariam inveja a qualquer pintor moderno rigoroso.
Naquele palco de grama cerrada, retornaram batalhas épicas. Ali se jogou muitos Derbys, muitas finais de Copa do Mundo.
Zé Roberto escolhia Rivelino ou Sócrates, seus amigos que escolhessem pernas de pau. Ademir da Guia, Pelé, Zico, todos presentes. Não havia juízes e nem rádios narrando, mas havia uma plateia de vizinhos, indignados com toda aquela euforia e algazarra dos pequenos peladeiros.
Diariamente, os ânimos se acirravam entre os jogadores, pés e braços se misturavam no gramado improvisado num chão de piche. As partidas duravam um ciclo solar.
No último dia daquelas férias, Betinho, como era chamado pelos amigos, aprontou a perna esquerda e fulminou, certo de que acertaria o alvo, se o goleiro tocasse a bola, perderia a mão, se passasse tocaria no travessão imaginário e explodiria no fundo da rede.
Armou, correu, bateu. Num destes imprevistos, daqueles que aproximam o futebol dos acasos da vida, a bola bateu no travessão, bateu na guia, pulou o muro e saio do estádio, caindo dentro da casa de Seu Custódio.
Tentaram chamá-lo. Após longo silêncio ouviram uma explosão. A bola jogada sobre suas cabeças, murcha, definhada, morta.
- Chorei por duas semanas. Foi sem dúvida a minha mais dolorida separação. Até hoje escuto aquele estampido.
Nunca mais, dizem os daqueles tempos, voltou a se apaixonar. Cresceu, teve filhos. Mas a vida nunca mais foi a mesma desde então.
- Fui traído, a bola bateu numa trave que nem existia. Ela era minha amiga, companheira, não tinha esse direito... lamenta-se.



terça-feira, 18 de outubro de 2016

Historietas de Amor 2 - Velha

Historieta de Amor 2 – Velha


Ele nunca havia lido Schiller, Goethe ou românticos empedernidos. Era um homem, se olhado de longe, bruto, indiferente, frio. Nascido em Damasco, Síria, e deslocado à região de Marília ainda jovem, Youssef costumava passar a hora do almoço, entre uma entrega e outra em seu velho caminhão, sozinho.
De poucos amigos, um pouco pelo temperamento, um tanto pela diferença de línguas, se sentava ao pé da árvore, retirava um canivete e cortava a casca de uma laranja, metodicamente espiralando-a. Nestes tempos da Era Vargas, tempos de Hitler, de exageros de todos os lados, conheceu Antônia, menina simples e de temperamento também forte.
Ele nunca havia se apaixonado, embora tivesse seus quase 20 anos, ela cinco anos mais nova. Rosto magro e pele alva. Viraram em pouco tempo José e Antônia, casal recém-chegado, agora, a um bairro operário em Santo André, São Paulo, onde passaram seus próximos 50 anos.
Suas histórias, encontros e desencontros, seriam como a de muitos daquela geração. Tiveram meia dúzia de filhos, dos quais apenas as meninas sobreviveram. Duas gêmeas e a mais velha. Passaram por uma Grande Guerra juntos, pela Guerra Fria, por duas ditaduras e viram o Brasil vencer quatro Copas e perder umas tantas outras. Muito de um cotidiano, que por ora, prefiro omitir.
No fim da vida, trocavam o nome de todos os netos, das filhas, genros. Viram três bisnetos, não viram os demais, que chegariam após a virada do milênio.
Mesmo com a memória perdida, nunca se perderam um do outro. Antônia morreu primeiro, deixando Youssef. Ele chorou todos os dias, de saudade, de saudade. Chamava pela velha, apelido carinhoso que o impedia de lhe trocar o nome.
Morreu um ano depois, exatamente, como se provasse, em sua inquietude de velho adolescente que sim, em plena virada do milênio, ainda a guerrilheiros dispostos a morrer de amor.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Historietas de Amor - Episódio 1

Naquele vilarejo era a mais antiga história de amor. Contavam-na sempre que ocorria uma separação de um casal que de fato, ao menos na língua daqueles homens e daquelas mulheres, se amavam. 
Ao contarem esta história, era de costume local não precisar datas e nem nomes. Desconfio que estavam, perdidos na longa noite do tempo. Os mais velhos insistiam, quando questionados, que em história tão antiga, não havia espaço e tempo, ou outra categoria, fruto da razão humana, invencionices, crendices filosófico-conceituais.
E o amor daqueles tempos eram puros que inomináveis. Se dizia que tais personagens apenas viviam juntos, como que grudados, inseparáveis, por que eram apenas um.
Para aqueles senhores e senhoras que diziam ter acompanhado tais eventos, não havia noite ou dia. A vida era um eterno amar-se, a si e a outros. Dores e nem impotências havia. Também impérios e desordens não os havia. Somente, havia somente somente.
Eis que um dia, não se sabe quem dos dois, decidiu-se por sair. Alguns diziam que foi ele, que decidiu comprar cigarro e não voltou. Outros que ela enlouquecera de ciúme, não se sabe ao certo de quem. E então, naquele vilarejo fez-se algo que até então não havia existido.
Surgiu o dia e surgiu a noite. Surgiu a culpa, o arrependimento e a vingança. Muitos dizem que toda manhã ele se levanta, quando a vê deitar-se. Outros que ela quem o busca no mesmo horário, quando ele dá os primeiros lampejos de que ainda está vivo. 
Há interpretações alternativas. Numa delas ele sai toda a noite, como quem foge da maluca. Em outras, é ela quem não o perdoa, afinal de contas, não gostava de viciados.
A verdade é que não mais se encontraram, embora um não exista sem o outro. Toda sorte de interpretação é coisa daquela gente desocupada. A verdade é que para os dois, aquela eternidade que tiveram um dia, havia sido suficiente. Era preciso viver até esgotar-se o tempo. Quem sabe um dia, se olhariam novamente?