quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Postou a bandeira da França e foi dormir mais cedo

Com 35 anos, Oswaldinho, pode se dizer, é um advogado bem sucedido. Defensor dos princípios constitucionais e das liberdades individuais, tem como principal preocupação o futuro do Brasil, e porque não dizer, da humanidade. Cresceu em um bairro de classe média de São Paulo. Viveu os anos 80, mas traz vivo em sua memória a pujança da década seguinte. Em sua memória, seu pai, o grande herói que carrega no peito, entrando no sobrado em que moravam com um videogame japonês de última geração, para a época claro, e alguns tênis da nike. Tudo comprado na época em que o dólar era de um pra um.

Se lembra de ter votado no Lula, em 2002. Tinha um pouco de medo dele, mas não sabia bem porquê. Seus pais e a Regina Duarte haviam lhe ensinado muito bem.


Tenha medo Oswaldinho, cuidado com os assaltos, ao chegar em casa veja se não está sendo seguido, São Paulo é uma cidade violenta, gente de bem costuma ser vítima de sequestro, você viu o casal de adolescentes mortos por aquele adolescente?, e aqueles hipócritas do Sou da paz?, e você viu?, os presos tomaram outro presídio, e as brigas de torcida?, meu deus, Oswaldinho, por favor, tome cuidado e que deus te acompanhe, sempre. E Oswaldinho, tinha medo. Não sabia bem do quê, mas tinha medo. Mesmo assim, primeiro ano de faculdade e certa rebeldia, Oswaldinho foi na onda e votou no Lula.

Dois anos mais tarde começou a desconfiar daquele sujeito. Alguns professores alertavam sobre corrupção, sobre aparelhamento de estado, sobre desrespeito às liberdades individuais, sobre a influência de Fidel Castro no governo brasileiro, sobre o apoio de Lula às ditaduras de Venezuela e Bolívia e sobre o fato do presidente preferir cachaça à vinho, fato raro entre os refinadíssimos presidas da República Democrática dos Estados Unidos do Brasil (sic).

Oswaldinho começou um período de questionamentos, uma espécie de politização só que ao contrário.

Que país é esse se perguntava no banho todas as noites? Um analfabeto se tornou presidente. Estudo ao lado de filhos de empregadas. Mulheres, negros, índios e até os viados ficam enchendo o saco de gente de bem. Os bandidos tem bolsa isso. Os vagabundos, bolsa aquilo. Só falta o Corinthians construir um estádio. Ria com seus amigos, sabendo, ainda que inconscientemente que as ameaças eram mais imaginárias, que reais.

Oswaldinho se formou. Em fase, como se diz. Passou na OAB e sua carreira logo decolou. Seu pai agora aposentado já não tinha mais o mesmo poder de compra e nem a importância do passado. O dólar estava alto, mesmo assim, viajou para Europa e Miami com os velhos e a namorada. Feliz, Oswaldinho tinha apenas o incômodo, do que agora chamava de ditadura de esquerda. Daqui a pouco, virão buscar seu Veloster e dividi-lo com os pobres. Gostava de lembrar, no Happy Hour na Vila Madalena que o havia comprado com muito suor e horas sem dormir, depois daquele contrato de um jovem jogador de futebol com a Europa. Ele mesmo redigiu os contratos. Os dois dizia, deixando no ar seu conhecimento profundo sobre como funcionavam as coisas... Enfim, Oswaldinho foi se tornando egoísta e raivoso. E paradoxalmente, cada vez mais preocupado com os rumos da coletividade.

Na última sexta, Oswaldinho surtou. Após os atentados na França, explodiu e resolveu fazer alguma coisa. Basta de ciclovias, de controle sobre o ir e vir limitando a velocidade no trânsito, basta daquela imbecil fazendo discursos ignorantes, chega dessa ditadura petista, chega destes petralhas e destes comunistas vagabundos que não gostam de trabalhar, basta de feminazis querendo dominar o mundo dos homens, de ditadura lesbobicha, de impunidade, de assassinatos, de inconstitucionalidade, chega desta esquerda abortiva maconheira, irresponsável e hipócrita, bando de caviar do caralho. Basta de imigrantes sírios, de imigrantes nigerianos, de qualquer um que não seja brasileiro, ou francês, ou alemão, ou americano, sei lá, que não seja, puro, isso mesmo, pu-ro!

Colocou uma bandeira da França no seu perfil social. Oswaldinho tinha uma missão. E não falharia, por nada. Tinha um aliado importantíssimo em sua missão contra o mal. Esse aliado era o ódio. O ódio como afeto político. Mas ele não sabia disso, bem intencionado que era.

Oswaldinho se considerava puro e muito diferente daqueles terroristas. Um democrata dizia sobre si. Estes terroristas são da mesma laia destes petralhas todos. No mundo de Oswaldinho, ou se é gente de bem como ele, ou você é vermelho. E vermelho de raiva, Oswaldinho misturava tudo em sua cabeça insana. A bandeira da França tremulava na tela de seu Computador. Oswaldinho deitou-se na cama satisfeito.

Apenas, Oswaldinho não conseguia perceber, cego como um fundamentalista que seu ódio era feito da mesma matéria daqueles que explodem bombas em nome de Alah, ou jogam pedras, reais e metafóricas, em nome de Cristo. Não podia conceber que seu ódio é o mesmo ódio de toda guerra, todo maniqueísmo, de toda simplificação que possamos fazer sobre o outro e sobre a realidade. Em suma, Oswaldinho não consegue perceber, porque o ódio cega, que em tempos de crise, o ódio é o afeto político usado por todos aqueles que querem dominar a humanidade, em defesa de seus privilégios e suas castas.

Oswaldinho não conseguia enxergar o futuro, se não preso às lentes de um passado cada vez mais presente. Oswaldinho não sabia, nunca se interessou por política, afinal. Para ele era o nós contra eles, os homens de bem na cruzada contra o mal, contra aqueles, os impuros, os infiéis. Oswaldinho pensou tudo isso e caiu no sono.

Nosso personagem era do Estado Islâmico, mas ninguém o avisara...

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Das coisas do mar (ou das palavras dizíveis do amar)

Talvez o gesto de caminhar entre pedras que dançamos há pouco
Subindo aqui a esse monte de todas as formas existentes
Fez que me perguntasse se lhe tenho amor 
E se o tenho de que amor é feito esse amar

Olhavamos a imensidão azul que redunda em mistura de céu a mar
Você me olhava esperando uma resposta
Eu não dizia nada porque não sabia exatamente
Começar e menos ainda acabar
Ao ponto de lhe dizer todas as palavras que havia.
E insistia numa teimosia:

As palavras não dariam conta da imensidão azul verde cinza do céuamar
Você, por certo, não entenderia como antes e depois
Divagaríamos e nos desentenderíamos
Em meio a palavras que saem tortuosas como
Ondas incontroláveis, que não sabem
Parar
mas também não sabem quando vem
Se pra lá, ou pra diante, se recuam ou
Avançam.

Como as ondas, as palavras não encontrariam
Chão
E não teriam razões e se rebentariam
Umas contras as outras impacientemente...
E o vento cessaria e a noite chegaria...

Dependendo da lua, a noite, traria mais ou menos maré
E as palavras de novo não saberiam se naquele instante
Muita ou pouca água nos cobriria nas areias
Fugiríamos para as pedras
tentando nos proteger
ou nos jogaríamos na rebentação em busca de uma ilha aérea?

E neste divagar de ondas fluiriam tantas coisas indizíveis,
quanto tentativas de dizê-las
A verdade das palavras ou das ondas é
que elas são a aparência do mar e do amor
Na essência desse aparecer de ondas e palavras há um oceano profundo
É nesse oceano entre tantas espécies conhecidas
E tantas outras fantasiadas que se assentam as ondas

Aqui de cima desse monte não é possível avistá-las todas, mas veja:
O que eu consigo dizer quando fecho os olhos
E pululam estrelas do céuamar
Nas minhas pálpebras oceânicas é uma imensidão
Como entre céu e mar em que tudo são ondas.

Por baixo das ondas, já lhe disse, há um oceano,
Por sobre elas, há outro oceano: o céu
É você isso tudo que posso ver do alto dos montes
É você isso tudo que não tem palavras e não tem fim
É você que é essa mistura fluida, entre céu água sal e ar
Cosmos éter areia, desse infinito que não se acaba
De todas essas ondas, 
Esse mar
Esse oceano céu amar

Nadaríamos, enfim, na calmaria das profundezas
E encontraríamos no fundo desse oceano
A ilha que habita as nuvens
E nos entenderíamos cansados
Em um longo e calmo silêncio

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Silêncios

Silêncio


Descobri nesta semana que ler um monte de crônica, de variados autores, nem sempre ajuda a escrever uma. Mesmo que falassem sobre o processo de produção delas.  Sem assunto as li, na busca de algo surgir.  Nada.
Normalmente, ou falo das coisas mundanas que me inquietam, ou falo de mim mesmo. Ou seja, ou vou pelo intimismo ou pela politização. Ou pelo objetivo ou pelo subjetivo. Dessa vez não. Inovaria, pensei. Ou seja um tema novo, quero dizer um assunto inusitado, ou seja peculiar. Mais de um “ou seja” no mesmo parágrafo... Falta assunto.
Esta ausência é um baita problema para quem vive cercado de pessoas, praticamente em todos os espaços pelos quais passa. O jeito estava em um mergulho interno. E o mergulho interno leva ao silêncio. (Veja só, já comecei a desancar por linhas intimistas...)
Foi ontem, depois de um banho, percebi que precisava de silêncio para criar. Ufa... Chegamos ao assunto...
Falar sobre o silêncio. Façamos silêncio. Fim! E o vazio se instala...
Afinal uma crônica sobre o silêncio é uma conversa encerrada... A hora que se quiser. Façamos silêncio...

O leitor pensaria: Isso, cheguei até aqui pra isso? Isso não é uma crônica é uma piada ruim, feita por um humorista ruim. E eu ficaria sem graça...  Outro leitor diria, com o pincenez nas mãos e o olhar de quem manja dos parangunduns: Não há conversa. Há texto escrito (pausa para ajeitar o pincenez nos olhos), se escrito não tem som, logo tem silêncio. E então eu seria desmascarado, já que esse tom de conversa, entre nós, íntimos leitores, é uma profunda fraude. De fato não há conversa. Não há som. Nem assunto há.

Pois bem, evitemos um ou outro caso de julgamentos precipitados.
Argumentaria contrariando-o, humildemente, claro, que o silêncio é algo além da presença ou ausência do som. O silêncio é um estado de espírito. (Crônica intimista!!!) Talvez nunca haja ausência de som, mas ainda assim há silêncio. Nos lugares mais agitados o silêncio também esta: o minuto que precede o gol, o instante que antecede o gozo entre dois amantes, o coro da plateia num show musical. São formas de silêncio.
Enquanto aqui escrevo, por exemplo, há muito barulho lá fora. Há criança gritando, há um buzinar de carros ensurdecidos, um sibilar de cigarras e aves esquisitas. Mas me sinto em um profundo silêncio, em busca deste ouro raro, a palavra. O silêncio, caríssimo leitor, é uma parte íntima do processo de produção de um texto. Mergulha-se, o escritor, antes de que ele, o texto, saia, numa profunda introspecção silenciosa em busca de algo que desperte nele a delicadeza do dizer. E este mergulho, se feito em meio a aparatos eletrônicos ou vozes estridentes, pouco importa. A busca é pelo silêncio. Este silêncio interno, vazio, mouco, surdo, de quem vê o mundo com os olhos de dentro. (alerta de crônica intimista 3!)
Essa introspecção silenciosa pode ser confundida com melancolia, alheamento ou resignação. Não é nada disso. Nada disso. É busca, é movimento. Pode-se estar inteiramente alegre ou profundamente triste. Nada importa de fato. No texto não vai uma coisa e nem outra. Vão palavras e elas precisam do silêncio. (Crônica intimista, crônica intimista!)

Pulemos de galho. O silêncio também toma parte na política. Nela, quando há silêncio, há autoritarismo. Viu, Cunha? Viu, jovens do 16 de Março? Viu, viu? As ditaduras se ocupam em silenciar. Em não deixar dizer.
E engraçado que isto revela nossa insatisfação crônica, com o perdão do trocadilho. Nas ditaduras temos que fazer silêncio, mas brigamos por falar. Nas democracias, podemos falar, mas gostamos mesmo é do claustro confortável de nossas casas, em busca de silêncio depois de um dia agitado de uma vida mais ou menos. (Ah não, não e não, crônica politizada, não!)
Enfim. Por fim. O silêncio... Ele não é apenas ausência de ruído ou de fala. Mas é também um modo de dizer. Em outras palavras, quase sempre, quando dizemos, escondemos milhões de outros dizeres possíveis, ou que sairiam de outro modo. Explico: para os psicanalistas - estes loucos que buscam sentido em tudo, mesmo não os tendo encontrado em si mesmos - aquilo que não é dito, é muito mais significativo do que o expressado. Para eles, o silenciado é o verdadeiro barulho.
Por exemplo, sempre que algo nos incomoda, deslocamos nosso incômodo para outra coisa. Ao sentir raiva, por exemplo, de alguém, quantas vezes não dizemos que é o outro que nos sente? Ao sentir ciúme, quantas vezes não dizemos que a culpa é do outro. E quantas vezes, pelo medo da rejeição, não dizemos nós que queremos rejeitar? Em todos estes e outros casos, leitor esperto, o que importa é o omitido, o oculto, o que não foi sonorizado, mas está ali, pulando para fora. O dito, nestes casos, apenas uma máscara irrelevante.
E talvez (disse talvez) falar sobre o silêncio, seja isso. Fugir do que realmente precisava ser dito.
Eu não queria, mesmo, mas parece que fiz uma crônica introspectiva.  

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Mudanças

Moro na mesma casa há trinta anos. De tempos em tempos, quando chego da rua, sinto um desconforto enorme e a sensação de que tudo está fora do lugar. Ou sujo...
Há uns anos, por exemplo, cheguei em casa e me deparei com a completa ausência de paredes e divisórias. A cozinha, a sala, o quarto, tudo ocupava um único e grande cômodo. A exceção: o banheiro, um cubículo no quintal. Longe de tudo. Cansado daquele lamentável estado de coisas misturadas, decidi, neste dia, começar uma grande reforma.
Separei os cômodos, criei quartos e divisórias, impus limites e barreiras aos que vem de fora, embora sempre tenha deixado a porta da rua aberta, aos mais diletos e perigosos amigos. Quiçá um erro.
Esta reforma acabou há alguns anos, em meio a uma brutal crise. Não tinha capital e nem espaço para colocar alguns móveis. A reforma emperrou-se.
A angústia ficou, cresceu.
Desde então, muitas das vezes em que chegava em casa e me deparava com a casa inacabada, estavelmente inacabada, decidia pintar uma parede, jogar fora um móvel, pregar um quadro, uma fotografia e ir tocando a marcha da vida em frente, mais ou menos calmo, menos ou mais angustiado.
Feitas as ressalvas e considerações iniciais, para que você leitor, possa entender a secura das metáforas, posso transitar agora para o grande evento destes tempos recentes e para a grande descoberta.
Numa sexta-feira qualquer destes últimos meses, entrei em casa e me veio uma sensação de sangue fugindo da barriga. Era o monstro que habita a casa desenhando-se em forma de incômodo.
Olhei-o nos olhos e pensei espantá-lo limpando sua sujeira. Enquanto varria um dos muitos cantos da sala, o sangue me pulou aos olhos e me deu uma vontade de atirar tudo pela janela. Queria outra casa, outros móveis, alguém pra limpar aquela sujeira, que nem mais sabia se existia ou não.
Um pouco atordoado, com tudo inacabado, sentei-me na frente do sofá e olhei para um grande espelho em minha frente. Pude notar que minhas rugas eram maiores que há dez anos. E acompanhavam as rachaduras, ainda minúsculas nas paredes. Pensei que porra. Nunca havia prestado atenção, mas notei que meu incômodo tinha uma direção, tinha um sentido. Podia conectar aquele nó interno a um objeto, sempre via, mas é como se o esquecesse, porque habituado tanto a ele. Este objeto era o tapete, o tapete da minha vida. O grande incômodo nesta casa é o tapete.!
A história breve deste tapete poderia ser mais ou menos interessante. Recebi-o de meus pais ainda muito pequeno. Na época, ele não tinha mais que dez ou quinze centímetros. Mas cada ano ele crescia para os lados e em espessura. Cada vez maior e espesso, ao ponto de ter que cortar suas abas, ora ou outra encostadas nas paredes.
Decidi enrolá-lo e levar pra fora. Mas o peso dele era imenso. Percebi que demoraria algumas semanas. Então, comecei lentamente um processo de limpeza, enquanto refletiria sobre o que fazer.
Ao levantar um de seus lados, subiu tapete e poeira. Ainda não tinha tirado os móveis que o apoiavam, mas percebi que por baixo haveria muito mais poeira. Limpei brevemente uma parte do solo abaixo do tapete e descobri uma coisa incrível. Por baixo daquele tapete havia um chão, este chão dava acesso a uma outra casa igual a minha, mas invertida e escondida por baixo de tanta poeira. Percebi que o trabalho seria longo. Mas resolvi o problema.
O problema, o problema era o tapete.
E a poeira, claro...  

sábado, 19 de setembro de 2015

Outrem

Singela homenagem ao governador de São Paulo de Piratininga da Borda do Campo, Geraldo Alckmin,

Atenção senhores usuários:
Entrem no trem!

Transeuntes trôpegos trapaceiam
Ceiam nas cabeças um dos outros

Tropeçam, trancos, barrancos
Braços, barrigas
Empurra, aperta, porta,
Tronco braço porta
Perna ponta pé.

Atenção usuários:
Espremam-se,
Não bloqueiem as portas!

Trabalhadores, trombadinhas, travestis
Troça, trepa, treta
Aperta, empurra, teima,
lima, sua, nossa, nossa!

Usuários, porra:
Não bloqueiem as portas, caralho!
O trem sairá com ou sem trouxas!

Comprime, comprime,
Guarda braço pé língua coração
Se entrenizem
Silêncio
Trilhos
Luzes

Próxima estação:

Desembarquem!

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A história do menino afogado

À margem da imensidão azul, foi encontrado de espadas para cima. Sem dúvida, estava em seu lugar, finalmente um marginal.  Em vida, havia sido bem menos que isso.
Naquela manhã, um soldado percebera uma deformação que interrompia o bater de ondas. Estarrecido, carregou o corpo nos braços.
Na semana anterior, aquele corpo era um menino. Juntamente de seus pais e avós, havia perambulado léguas no longo areal a caminho do litoral, fugindo da violência e da opressão de sua terra.
Um longo deserto, outrora habitado por guerreiros de uma tribo, hoje dispersa ou submetida a todos e a si mesma. Durante séculos, a região que habitava fora invadida por homens cobiçosos, sedentos de luxo, luxuria e transformando tudo em lixo. Estes homens, maus para uns, libertadores para outros, apropriaram-se de suas terras, suas vidas, seus sonhos. 
Vira e mexe, estes dominadores eram expulsos ou abandonavam aquele lugar de semi-existência, sempre árido. Iam-se em busca da vida do litoral, de outras riquezas, de outras paragens.
Deixavam-nos, todos, abandonados a própria sorte, dominados agora por ditadores.
Esta história se repetiu na vida de seu avô, de seu pai, repetia-se em sua breve existência. Guerra, seca, dominação, abandono, ditadores interessados em terra e sangue.
Em meio a mais uma longa disputa por terras entre homens que os opunham uns aos outros, seu pai tomou a decisão. Viajariam até o litoral, subiriam em uma embarcação e seriam felizes, longe da seca, das dores, da fome, da guerra e do sangue. Iriam para um lugar melhor, trabalhariam, fariam a vida.
Juntaram o pouco que tinham. Os avôs, uma avó, pai, mãe e dois irmãos. Entraram numa embarcação. A viagem demoraria três dias. O mar era calmo e o tempo era bom. O barco, nem tanto.
O resto é aquilo que todos sabem. Engolidos pela imensidão do mar, nem imaginaram se encontrar em outro mundo. 
O garoto foi cuspido de volta e amanhecia naquela posição, naquelas margens imensas.
No dia seguinte ao acontecido, todos comentavam, naquela cidade, a história do menino nordestino encontrado nas areias de Santos.
Sem foto, sem alarde, sem memória.
São Paulo, Brasil, 1965.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Bruno e sua comparsa

Hortolândia. São Paulo. Toda vez que passava um carro, uma poeira vermelha subia envolvendo os pequenos jogadores de um campo improvisado naquela via semi-asfaltada. Ao baixar da poeira, surgiam as figuras de três garotos que cresceram juntos. Bruno, Marquinho e Robson. Era meados dos anos 90.
Estes três garotos, na infância, corriam atrás de bola e pipa, como toda criança pobre das periferias de grandes cidades. Cresceram em tempo de extrema violência. Matava-se para ver cair, roubava-se para se comer. Mas os garotos alheios a isso, jogavam bola até tarde na rua, embalados ao som de Zeca Pagodinho que saia do rádio recém-comprado na Casas Bahia por algum trabalhador.
Bruno era neto de empregada doméstica. A avó saia cotidianamente para trabalhar na Cidade, como se chamava Campinas nos ônibus intermunicipais daquela terra. Ia e vinha da Cidade, alheia de seu futuro, em busca apenas do sustento e de um sorriso. Dois, as vezes três, ônibus até o trabalho. Um salário que sempre dava na conta da sobrevivência, mas o suficiente para ao lado do marido, um pedreiro vindo do Paraná, comprar um terreno e criar seus filhos e filhas.
Sempre fora bem tratada pelos patrões. Não havia o que reclamar. A não ser a distância e o cansaço. A vó via o neto crescer em meio à violência, embora sempre esperançosa de torná-lo doutor.
A família de Bruno tinha uma estrutura precária, é verdade. Ele morava num cômodo com a mãe, o pai e duas irmãs, no quintal da avó. Comia diariamente a comida deixada por ela, antes de sair, amorosamente. Bruno tinha teto, tinha pão, tinha esperança. Seus amigos do início da história, nem tanto. Um apanhava diariamente do pai, que bebia seu parco salário em botecos maltratados. O outro era quase sozinho no mundo, criado por uma velha tia, idosa, numa casa invadida por seu velho. Num tiroteio, este que sempre andava com o peito a mostra, fora baleado por um coxinha, mal pago, fodido.
Mesmo assim, os três cresceram, sorriram. Viviam as duras penas, mas viviam. Chegavam a adolescência mais espertos, mais fortes e prontos para a vida. Seja lá o que isso significava naquela rua, agora asfaltada. Após o futebol, antes de tentarem ficar com uma das garotas do colégio, já nos anos 2000, acendiam um cigarro de maconha. Riam de si e sentiam-se poderosos. Talvez não mais sonhos de doutores, mas a vida valia a pena, pode crer?
A vó não via nem ouvia nada, mas intuia em seu coração acontecimentos futuros e trágicos. Tentou avisar, a mãe, o pai. Em vão. Restou-lhe orar num templo da Assembleia de Deus, genuinamente, pedindo socorro ao divino. Ela pedia pelo neto, sem saber pelo quê. Mas pedia. As vezes tinha a sensação de falar sozinha. Mas fazer o quê? Pelo certo, pelo duvidoso, mal não há de fazer.
Uma semana após tais conversas, num domingo ensolarado e triste, Bruno e seus amigos entraram em uma lanchonete, perto da vila onde moravam. Colocaram uma arma de brinquedo na cabeça do dono da espelunca. Trancafiaram no banheiro, um garçom e o chapeiro. Enquanto a arma era mantida na cabeça do dono, por um deles, não se sabe qual, Bruno e o outro pulavam agilmente o balcão, roubando das gavetas do caixa quarenta reais, das prateleiras, oito maços de Marlboro, um de TE, uma marca vagabunda de cigarros paraguaios. Diriam mais tarde, entre sorrisos e fumaças de maconha, melhor TE, do que não ter, em tom de um desgastado trocadilho.
O roubo deu certo. Não fosse o dono, um antigo conhecido de um dos meninos, não se sabe qual, ter ligado 190. A polícia acercou-se da região, procurou-os naquela noite, sem sucesso.
No dia seguinte, a sirene soou em frente a casa de portão baixo, quintal de terra e cimento batido. O vento leste balançava as roseiras esquálidas e mal cuidadas, como se saudassem aqueles nefastos visitantes. A vó não estava, naquele momento, mas seu coração disparara à distância. Bruno, inexperiente, ameaçou fugir. Mas fugir pra onde, se tudo cercado? Desistiu. Mãos na cabeça, gritos de sua mãe, olhar distante. Engoliu o choro e como um homem de dezessete anos deve fazer meteu-se na traseira daquela picape importada e foi-se.
Seu desespero começou mesmo, quando sua mãe o visitara pela primeira vez, com a irmã. Queria correr, gritar. Queria parar aquilo tudo e só pensava no campo de futebol de terra batido com cheiro de nove anos. O desespero deu lugar à raiva, posteriormente transformada em melancolia e resignação.
A vó pediu dinheiro emprestado e o juntou às economias dos últimos anos. Pagou um advogado que em alguns dias conseguiu perpetrar um habeas corpus. Soltou Bruno, bem como a seus amigos, com o mesmo dinheiro e um pouco de boa vontade do doutor, que trabalhou pelos mesmos honorários, mesmo que tenha ficado dividido entre fazer ou cobrar o preço de seus honorários àquela senhora parda e sofrida.
Cada um seguiu o seu caminho. Bruno, nosso personagem central, depois de sua avó, matriculou-se em um curso profissionalizante e começou a mandar currículos. Tinha algumas recaídas e remorsos, neste momento fumava maconha. Os três mantiveram-se à espreita, como esperando o desfecho de uma tragédia.
Hoje, uma multinacional ligou na casa de sua avó. O neto estava sendo chamado para uma entrevista desejada por muitos daquele bairro. Tíquete alimentação, seguro de vida e plano de saúde. Tudo pago pela empresa. Uma benção! Seria a redenção, os humilhados sendo exaltados.

Bruno não pode ir. Na semana passada saiu sua sentença. Dois anos de reclusão. A polícia bateu em sua porta novamente e o levou taciturno. A vó aceitou. A mãe reclinou-se, caiu de joelhos, mas de que valeria o desespero? Um de seus parças fugiu, mas decidiu se entregar. Em meio as lágrimas, num cômodo sujo, entregue à solidão, fez um soluçante pedido para que a família de Bruno, a única que tinha, o fosse visitar de vez em quando. O outro ninguém sabe o paradeiro. A vó decidiu não visitá-lo mais, seu coração não aguenta. As irmãs e a mãe farão isso pelo próximo biênio.
A verdade é que na cabeça de muitos, a justiça foi feita.
Enquanto isso, um velho patrão da educação rouba o fundo de garantia dos funcionários sem registro, com a conivência do judiciário. Deputados são agentes de empresários privados, furtando os cofres públicos. Empresários e empreiteiros mantém suas fortunas, mesmo provado seus crimes, com a conivência do judiciário. Acionistas jogam com o futuro de milhões aos montes nas bolsas de valores, dispostos a tudo, matar se for o caso, com a conivência do deus mercado... Bancos quebram, empresas quebram. Milhões sofrem as consequências. Mas 40 reais e um cigarro paraguaio condenam três jovens à profunda irrecuperação. E sairão de lá marcados como gado: pertenci ao Sistema Penitenciário Brasileiro – sentenciado eternamente à marginalização e a miséria social.
Justiça seja feita, diria a avó, que o Senhor sabe dos seus caminhos, em mais um domingo pela manhã, tentando ser ouvida.  

Breve apresentação: As nonadas

Nonada é coisa sem importância.
Nonada é vereda que nos leva de volta a nós mesmos.
Nonada é um pouco do nada, para ninguém mesmo.
Nonadas. Viver. Perigos.
Em busca de uma aldeia, me encontrei com palavras e imagens. Estas amigas das horas vãs, de todas as horas nos descaminhos de minha memória.
Apresento-lhes minhas nonadas. Crente de que a arte é um dos caminhos a nos revelar quem somos e para onde vamos.
Boa trajetória, Ulisses.
Início de mais uma caminhada.
Nonadas.