segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Bruno e sua comparsa

Hortolândia. São Paulo. Toda vez que passava um carro, uma poeira vermelha subia envolvendo os pequenos jogadores de um campo improvisado naquela via semi-asfaltada. Ao baixar da poeira, surgiam as figuras de três garotos que cresceram juntos. Bruno, Marquinho e Robson. Era meados dos anos 90.
Estes três garotos, na infância, corriam atrás de bola e pipa, como toda criança pobre das periferias de grandes cidades. Cresceram em tempo de extrema violência. Matava-se para ver cair, roubava-se para se comer. Mas os garotos alheios a isso, jogavam bola até tarde na rua, embalados ao som de Zeca Pagodinho que saia do rádio recém-comprado na Casas Bahia por algum trabalhador.
Bruno era neto de empregada doméstica. A avó saia cotidianamente para trabalhar na Cidade, como se chamava Campinas nos ônibus intermunicipais daquela terra. Ia e vinha da Cidade, alheia de seu futuro, em busca apenas do sustento e de um sorriso. Dois, as vezes três, ônibus até o trabalho. Um salário que sempre dava na conta da sobrevivência, mas o suficiente para ao lado do marido, um pedreiro vindo do Paraná, comprar um terreno e criar seus filhos e filhas.
Sempre fora bem tratada pelos patrões. Não havia o que reclamar. A não ser a distância e o cansaço. A vó via o neto crescer em meio à violência, embora sempre esperançosa de torná-lo doutor.
A família de Bruno tinha uma estrutura precária, é verdade. Ele morava num cômodo com a mãe, o pai e duas irmãs, no quintal da avó. Comia diariamente a comida deixada por ela, antes de sair, amorosamente. Bruno tinha teto, tinha pão, tinha esperança. Seus amigos do início da história, nem tanto. Um apanhava diariamente do pai, que bebia seu parco salário em botecos maltratados. O outro era quase sozinho no mundo, criado por uma velha tia, idosa, numa casa invadida por seu velho. Num tiroteio, este que sempre andava com o peito a mostra, fora baleado por um coxinha, mal pago, fodido.
Mesmo assim, os três cresceram, sorriram. Viviam as duras penas, mas viviam. Chegavam a adolescência mais espertos, mais fortes e prontos para a vida. Seja lá o que isso significava naquela rua, agora asfaltada. Após o futebol, antes de tentarem ficar com uma das garotas do colégio, já nos anos 2000, acendiam um cigarro de maconha. Riam de si e sentiam-se poderosos. Talvez não mais sonhos de doutores, mas a vida valia a pena, pode crer?
A vó não via nem ouvia nada, mas intuia em seu coração acontecimentos futuros e trágicos. Tentou avisar, a mãe, o pai. Em vão. Restou-lhe orar num templo da Assembleia de Deus, genuinamente, pedindo socorro ao divino. Ela pedia pelo neto, sem saber pelo quê. Mas pedia. As vezes tinha a sensação de falar sozinha. Mas fazer o quê? Pelo certo, pelo duvidoso, mal não há de fazer.
Uma semana após tais conversas, num domingo ensolarado e triste, Bruno e seus amigos entraram em uma lanchonete, perto da vila onde moravam. Colocaram uma arma de brinquedo na cabeça do dono da espelunca. Trancafiaram no banheiro, um garçom e o chapeiro. Enquanto a arma era mantida na cabeça do dono, por um deles, não se sabe qual, Bruno e o outro pulavam agilmente o balcão, roubando das gavetas do caixa quarenta reais, das prateleiras, oito maços de Marlboro, um de TE, uma marca vagabunda de cigarros paraguaios. Diriam mais tarde, entre sorrisos e fumaças de maconha, melhor TE, do que não ter, em tom de um desgastado trocadilho.
O roubo deu certo. Não fosse o dono, um antigo conhecido de um dos meninos, não se sabe qual, ter ligado 190. A polícia acercou-se da região, procurou-os naquela noite, sem sucesso.
No dia seguinte, a sirene soou em frente a casa de portão baixo, quintal de terra e cimento batido. O vento leste balançava as roseiras esquálidas e mal cuidadas, como se saudassem aqueles nefastos visitantes. A vó não estava, naquele momento, mas seu coração disparara à distância. Bruno, inexperiente, ameaçou fugir. Mas fugir pra onde, se tudo cercado? Desistiu. Mãos na cabeça, gritos de sua mãe, olhar distante. Engoliu o choro e como um homem de dezessete anos deve fazer meteu-se na traseira daquela picape importada e foi-se.
Seu desespero começou mesmo, quando sua mãe o visitara pela primeira vez, com a irmã. Queria correr, gritar. Queria parar aquilo tudo e só pensava no campo de futebol de terra batido com cheiro de nove anos. O desespero deu lugar à raiva, posteriormente transformada em melancolia e resignação.
A vó pediu dinheiro emprestado e o juntou às economias dos últimos anos. Pagou um advogado que em alguns dias conseguiu perpetrar um habeas corpus. Soltou Bruno, bem como a seus amigos, com o mesmo dinheiro e um pouco de boa vontade do doutor, que trabalhou pelos mesmos honorários, mesmo que tenha ficado dividido entre fazer ou cobrar o preço de seus honorários àquela senhora parda e sofrida.
Cada um seguiu o seu caminho. Bruno, nosso personagem central, depois de sua avó, matriculou-se em um curso profissionalizante e começou a mandar currículos. Tinha algumas recaídas e remorsos, neste momento fumava maconha. Os três mantiveram-se à espreita, como esperando o desfecho de uma tragédia.
Hoje, uma multinacional ligou na casa de sua avó. O neto estava sendo chamado para uma entrevista desejada por muitos daquele bairro. Tíquete alimentação, seguro de vida e plano de saúde. Tudo pago pela empresa. Uma benção! Seria a redenção, os humilhados sendo exaltados.

Bruno não pode ir. Na semana passada saiu sua sentença. Dois anos de reclusão. A polícia bateu em sua porta novamente e o levou taciturno. A vó aceitou. A mãe reclinou-se, caiu de joelhos, mas de que valeria o desespero? Um de seus parças fugiu, mas decidiu se entregar. Em meio as lágrimas, num cômodo sujo, entregue à solidão, fez um soluçante pedido para que a família de Bruno, a única que tinha, o fosse visitar de vez em quando. O outro ninguém sabe o paradeiro. A vó decidiu não visitá-lo mais, seu coração não aguenta. As irmãs e a mãe farão isso pelo próximo biênio.
A verdade é que na cabeça de muitos, a justiça foi feita.
Enquanto isso, um velho patrão da educação rouba o fundo de garantia dos funcionários sem registro, com a conivência do judiciário. Deputados são agentes de empresários privados, furtando os cofres públicos. Empresários e empreiteiros mantém suas fortunas, mesmo provado seus crimes, com a conivência do judiciário. Acionistas jogam com o futuro de milhões aos montes nas bolsas de valores, dispostos a tudo, matar se for o caso, com a conivência do deus mercado... Bancos quebram, empresas quebram. Milhões sofrem as consequências. Mas 40 reais e um cigarro paraguaio condenam três jovens à profunda irrecuperação. E sairão de lá marcados como gado: pertenci ao Sistema Penitenciário Brasileiro – sentenciado eternamente à marginalização e a miséria social.
Justiça seja feita, diria a avó, que o Senhor sabe dos seus caminhos, em mais um domingo pela manhã, tentando ser ouvida.  

Um comentário:

  1. puxa, meu amigo, tristemente belo. sinto (e ressinto) que as semelhanças com a realidade não sejam mera coincidência, rs

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