terça-feira, 18 de outubro de 2016

Historietas de Amor 2 - Velha

Historieta de Amor 2 – Velha


Ele nunca havia lido Schiller, Goethe ou românticos empedernidos. Era um homem, se olhado de longe, bruto, indiferente, frio. Nascido em Damasco, Síria, e deslocado à região de Marília ainda jovem, Youssef costumava passar a hora do almoço, entre uma entrega e outra em seu velho caminhão, sozinho.
De poucos amigos, um pouco pelo temperamento, um tanto pela diferença de línguas, se sentava ao pé da árvore, retirava um canivete e cortava a casca de uma laranja, metodicamente espiralando-a. Nestes tempos da Era Vargas, tempos de Hitler, de exageros de todos os lados, conheceu Antônia, menina simples e de temperamento também forte.
Ele nunca havia se apaixonado, embora tivesse seus quase 20 anos, ela cinco anos mais nova. Rosto magro e pele alva. Viraram em pouco tempo José e Antônia, casal recém-chegado, agora, a um bairro operário em Santo André, São Paulo, onde passaram seus próximos 50 anos.
Suas histórias, encontros e desencontros, seriam como a de muitos daquela geração. Tiveram meia dúzia de filhos, dos quais apenas as meninas sobreviveram. Duas gêmeas e a mais velha. Passaram por uma Grande Guerra juntos, pela Guerra Fria, por duas ditaduras e viram o Brasil vencer quatro Copas e perder umas tantas outras. Muito de um cotidiano, que por ora, prefiro omitir.
No fim da vida, trocavam o nome de todos os netos, das filhas, genros. Viram três bisnetos, não viram os demais, que chegariam após a virada do milênio.
Mesmo com a memória perdida, nunca se perderam um do outro. Antônia morreu primeiro, deixando Youssef. Ele chorou todos os dias, de saudade, de saudade. Chamava pela velha, apelido carinhoso que o impedia de lhe trocar o nome.
Morreu um ano depois, exatamente, como se provasse, em sua inquietude de velho adolescente que sim, em plena virada do milênio, ainda a guerrilheiros dispostos a morrer de amor.

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